FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério
Casa de Hóspedes (14º. Episódio)
Não pode, não diga, senhora, acudiu a Dona Júlia, sem perceber muito bem o que se tinha passado, mas se lhe fizer bem dizer, olhe que eu sou um poço, a minha boca não se abre, e fechava-a de canto a canto, correndo sobre ela dois dedos unidos. A outra não a ouvia e repetia-se, deu um murro na mesa, parecia louco, parecia mesmo louco. E então o que aconteceu depois, interrogou a outra, já intrigada. Ai, Dona Júlia, o Francisquinho levantou-se também, eram dois galos à luta, gritavam, gritavam, que horror, pai e filho como se fossem inimigos, está a ver. E então, acalmaram-se. De certa maneira, sim. No fim da berraria, o meu filho sentou-se e, em voz muito calma, mas muito branquinho, disse, não saio desta casa, não deixo a minha mãe sozinha com um porco fasci…, qualquer coisa que não posso repetir. Um horror, Dona Júlia, um horror. O meu marido começou a tremer, a tremer, de raiva, sabe, e eu a pensar que lhe ia dar ali alguma coisa, e o Francisquinho a comer o entrecosto, não sei como foi capaz, talvez pela fominha que passou lá onde esteve, coitadinho do meu rico filho. Mas afinal o que é que o seu filho fez, a ver se percebo, foi preso, não foi, desculpe mas há qualquer coisa que me está a escapar. Maria das Dores não respondeu, continuou no seu soluço abafado, um horror, um horror, o meu filho numa coisa teve razão, eu tive medo de ficar sozinha com o Mário Manuel, sim, que quantas vezes foi o Francisquinho que evitou que eu levasse mais do pai, percebe, ele tem a mão leve, o desgraçado, da última vez fui pelas escadas abaixo, de roldão, por graça de Deus não parti nada, mas fiquei toda moidinha. Dona Júlia atónita, e a senhora tem pena de ele ter saído de casa, que coisa, um homem tão delicado, fino mesmo, eu nunca iria pensar que fosse capaz de assentar as mãos numa mulher, pois, tem razão, as aparências.
Ouviram-se passos no corredor. Era o Gil, na passagem para a casa de banho deitou um olhar à sala, disse, bom dia, bom dia senhor Gil, é outro hóspede que cá tenho, um bom rapaz, quase a sair doutor. O meu Francisquinho também é muito bom estudante, Dona Júlia, saiu ao pai, que inteligente, lá isso, é, na maldade é que não saiu a ele, graças ao pai do céu, o meu filho é o meu amparo, a minha alegria de viver.
Aproveitando a interrupção na conversa com a chegada do Gil, Dona Júlia deitou uma olhadela ao relógio na parede, a outra reparou, levantou-se, desculpou-se, despediu-se, pediu, por alminha de quem lá tem não fale desta conversa àquele desgraçado, eu só queria que a senhora ficasse a saber a prenda que meteu na sua casa.
Quando fechou a porta, à saída da visita inesperada, Dona Júlia dizia para com os seus botões, enquanto despia a bata e vestia o casaco para ir finalmente à praça, só a mim, só a mim, agora como é que eu me vou ver livre dum fulano destes.
(continua)
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